sexta-feira, 23 de abril de 2010

Trechos retirados do livro "Em Águas Profundas", de David Lynch


O COMEÇO

Comecei como uma pessoa comum que cresceu no noroeste dos Estados Unidos. Meu pai era um pesquisador do Departamento de Agricultura que se dedicava ao estudo das árvores. Por isso, eu vivia na mata. E para as crianças, a mata é mágica. Eu morava numa cidade pequena, nesse tipo de lugar que as pessoas chamam de roça. Meu mundo se resumia a um ou talvez dois quarteirões da cidade. Tudo acontecia naquele espaço. Todos os sonhos, todos os amigos habitavam aquele mundinho. Mas para mim aquele mundinho parecia vasto e mágico. Havia tempo de sobra para sonhar e ficar com os amigos.
Eu gostava de pintar e desenhar. E equivocadamente pensava que, quando amadurecemos, deixamos de pintar e desenhar para fazermos coisas mais sérias. Ainda estava no ginásio quando minha família se mudou para Alexandria, na Virgínia. Certa noite, no jardim da casa de minha namorada, eu conheci um cara chamado Toby Keeler. Durante a conversa fiquei sabendo que o pai dele era um pintor. Achei que se tratava de um pintor de paredes, mas nas nossas conversas ele disse que o homem era um artista, e dos bons.
Essa descoberta mudou a minha vida. Embora eu também tivesse um certo interesse pela ciência, de repente me vi convicto de que queria ser pintor. E que queria viver e respirar arte.


A VIDA DA ARTE

No segundo grau eu li O espírito da arte, um livro de Robert Henri que versa sobre a vida artística. Para mim, viver a arte significava dedicar-se à pintura, uma dedicação absoluta que tornava tudo o mais secundário.
"Só com esse tipo de dedicação é que poderei me aprofundar e descobrir as coisas", eu pensava. Seguindo esse raciocínio, tudo o que desvia o indivíduo do caminho da descoberta não faz parte da vida artística. Na realidade, a vida artística implica liberdade. Eu também acho que isso parece um pouco egoísta, mas não é assim. Isso só significa que se precisa de tempo.
Bushnell Keeler, o pai do meu amigo Toby, sempre dizia: "Se você quer uma hora de boa pintura, terá que dispor de quatro horas só para si".
Isso é basicamente verdadeiro. Ninguém começa a pintar de cara. Antes você tem que se sentar por algum tempo e elaborar uma idéia, para só depois colocá-la em prática da melhor forma possível. E você também precisa ter alguns materiais à disposição. É preciso fazer, por exemplo, rascunhos para as telas. A preparação de um quadro pode demandar muito tempo. Só depois se consegue seguir em frente. A idéia tem que ser suficiente para se começar; mesmo porque, para mim, tudo o que vem adiante é um processo de ação e reação. É sempre um processo de construção e destruição. E, após essa destruição, a descoberta de algo e sua elaboração. A natureza desempenha um papel nesse processo. Reunir materiais difíceis - como assar alguma coisa ao sol ou utilizar um material que se contrapõe a outro - termina por causar sua própria reação orgânica. O negócio é então se sentar e estudar e estudar e estudar; de repente se dá um salto da cadeira e se passa a fazer a próxima coisa. Isso é ação e reação.
Mas se você está preocupado porque 30 minutos depois estará em algum lugar, não há como criar. Por isso, a vida artística implica liberdade; é preciso tempo para que as coisas interessantes possam acontecer. Nem sempre há muito tempo para as outras coisas.


O JARDIM À NOITE

Eu era então um pintor. Pintava e frequentava a escola de arte. Não tinha o menor interesse em filmes. De vez em quando assistia a um filme, mas o que me interessava mesmo era a pintura.
Um dia eu me instalei numa sala ampla da Academia de Belas Artes da Pensilvânia. Era uma sala dividida em cubículos. Eu estava lá no meu cubículo; o relógio marcava quase três horas da tarde. Havia um quadro em andamento; um jardim à noite. Era uma tela muito sombria, com plantas emergindo da escuridão. De repente, tive a impressão de que as plantas se moviam e cheguei até a ouvir o vento. Eu não estava sob o efeito de drogas! Então, pensei, "ora, como isso é fantástico". E comecei a me perguntar se o filme não seria uma maneira de pôr a pintura em movimento.
No final de cada ano havia um concurso para pinturas e esculturas. Eu tinha feito alguma coisa para esse concurso no ano anterior e pensei na mesma hora: farei uma pintura em movimento. Fiz uma tela enorme - 1,82m por 2,50m - e nela projetei um filme rudimentar. Ele se chamava Seis Homens Adoecendo. Achei que esse filme seria o ápice da minha carreira de cineasta, porque gastei uma fortuna para fazê-lo: 200 dólares. Assim, pensei, "simplesmente não tenho grana para seguir nessa estrada". Mas um estudante mais velho viu o projeto e financiou um outro trabalho meu para a casa dele. E dessa maneira comecei a carreira de cineasta. Depois disso, o caminho se abriu. Então, pouco a pouco - ou melhor, passo a passo - eu caí de amores por esse veículo.


ABRIR AS CORTINAS

É tão mágico - não sei por quê - quando se entra no cinema e as luzes se apagam. Tudo fica em silêncio e depois as cortinas começam a se abrir. Muitas vezes são cortinas vermelhas. E penetramos em outro mundo.
É maravilhoso quando essa experiência é compartilhada. E continua maravilho quando estamos em casa e temos nosso próprio cinema à frente, embora não seja o ideal. A tela do cinema é melhor. Essa é a maneira de se entrar no mundo.


CINEMA

O cinema é uma linguagem. Eu posso dizer coisas - grandes e abstratas. E adoro isso.
Nunca fui muito bom com as palavras. Algumas pessoas são poetas e têm um jeito maravilhoso de se valer das palavras para dizerem o que querem. Mas o cinema é uma linguagem singular. E com essa linguagem podemos dizer muitas coisas porque dispomos de tempo e seqüências. Há diálogos. Há música. Há os efeitos sonoros. Você tem muitos recursos. E assim pode expressar emoções e pensamentos que não poderiam ser expressos de outro modo. O cinema é um meio mágico.
Acho extraordinário poder pensar em cenas e sons fluindo juntos em tempo e seqüencia, fazendo algo que só pode ser feito por intermédio do cinema. E não são apenas palavras e música; reúne-se uma variedade de elementos que realizam algo completamente novo. Isso é contar histórias. É apresentar um mundo, uma experiência que os outros só terão se assistirem ao filme.
Sou apaixonado pela forma com que o cinema é capaz de expressar as idéias que capto para fazer os filmes. Gosto de histórias impregnadas de abstração, e isso o cinema pode fazer.


INTERPRETAÇÃO

O filme deve se bastar. É um absurdo o cineasta dizer com palavras o que significa um filme em particular. O mundo do filme é uma criação e às vezes as pessoas gostam de penetrar nesse mundo. Para elas, é um mundo real. E quando essas pessoas descobrem de que forma alguma coisa é feita, ou o seu significado, isso continua na cabeça quando elas assistem ao filme outra vez. E o filme se torna então diferente. Acho válido e muito importante que se conserve esse mundo e não se revelem certas coisas que poderiam estragar a experiência.
Não precisamos de nada além da obra. Existe uma grande quantidade de livros escritos por autores já falecidos e não precisamos desenterrá-los de suas covas. Mas podemos pegar um desses livros para ler e talvez as palavras provoquem sonhos e idéias a respeito das coisas.
Algumas vezes as pessoas dizem que não conseguiram entender um filme, mas na verdade entendem muito mais do que percebem. E isso acontece porque todos somos abençoados pelo dom da intuição; nós temos realmente o dom de intuir as coisas.
Embora alguém possa dizer que não entende de música, a maioria a vivencia emocionalmente e há de concordar que ela é uma abstração. Não é preciso traduzi-la com palavras, basta ouvi-la.
O cinema é muito parecido com a música. Ainda que seja abstrato, as pessoas tendem a apreendê-lo intelectualmente e traduzi-lo em palavras. E, quando não conseguem fazer isso, sentem-se frustradas. Mas essas pessoas acabam extraindo uma explanação de dentro delas, quando se permitem a isso. Se conversassem com os amigos, logo veriam as coisas com clareza e distinguiriam o que é do que não é. E poderiam concordar com os amigos ou mesmo questioná-los, mas como concordar ou discordar se ainda não sabem do que se trata? O mais interessante é que as pessoas realmente sabem mais do que pensam que sabem. E quando elas opinam, quando falam daquilo que sabem, tudo se torna mais claro. E quando percebem alguma coisa, isso pode ser um pouco mais esclarecido na troca de idéias com os amigos. É assim que se chega a uma conclusão. Uma conclusão que pode ser válida.


LOST HIGHWAY

Na época em que escrevi o roteiro de Lost Highway, junto a Barry Gifford, eu estava obcecado com o julgamento de O. J. Simpson. Embora não tivesse conversado a respeito com Barry, acho que o filme acabou associado ao caso.
O que me surpreendia em O. J. Simpson era a sua capacidade de sorrir e dar risadas. E conseguia jogar golfe despreocupadamente. Eu me perguntava como é que alguém que tinha feito aquele tipo de coisa podia continuar vivendo. E foi então que descobrimos esse termo psicológico fenomenal - "fuga psicogênica" - que descreve o evento no qual a mente se ilude para escapar do horror. Eis porque de certo modo Lost Highway gira em torno disso. E também sugere que nada pode ficar escondido para sempre.


MULHOLLAND DRIVE

Originalmente, Mulholland Drive era para ser um seriado de televisão. Nós o filmamos como um piloto, com o final em aberto para fazer com que o público quisesse continuar assistindo.
Fiquei sabendo que o filme foi assistido às seis da manhã pelo homem da ABC, o responsável pela decisão de torná-lo ou não um seriado. Disseram-me que o assistiu enquanto tomava café, andando pela sala e falando ao telefone. E ele odiou o que viu; achou enfadonho. Assim, rejeitou o projeto.
Depois, felizmente, tive a chance de torná-lo um filme. Mas eu estava sem idéias.
Ninguém usa a meditação para obter idéias. O que se faz é expandir o reservatório e sair dele revigorado, com muita energia e aberto para as idéias que virão.
Mas nesse caso em particular, com pouco tempo para transformar o piloto em filme, comecei a meditar e em 10 minutos lá estavam as idéias, em algum lugar. Essas idéias chegaram como um colar de pérolas. E entraram no meio, no começo e no fim. Eu me senti abençoado. Mas foi a única vez que me aconteceu durante uma meditação.


A CAIXA E A CHAVE

Não faço idéia do que sejam.



(LYNCH, David. Em águas profundas: criatividade e meditação. Trad. port. Márcia Frasão. Rio de Janeiro: Gryphus, 2008.)

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